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Nasci na periferia e pensei que nunca fosse ser alguém

Atualizado: 30 de jul.

O que essa frase revela sobre pertencimento, autoconceito e feridas invisíveis da exclusão social


Essa frase tem o peso de uma vida inteira. Não é só uma queixa. É uma tradução crua do que significa crescer em um mundo que não te reconhece como alguém com futuro. Eu escutei isso de pacientes. De colegas. De mim mesma em algumas fases. Sempre num tom que mistura tristeza com lucidez. Como quem percebe, tardiamente, que passou boa parte da vida pedindo permissão para existir.

Pensar que não vai ser alguém é um tipo de luto antecipado. A criança aprende a esperar menos. O adolescente engole sonhos antes mesmo de nomeá-los. E o adulto carrega, no corpo e nas escolhas, essa crença enraizada de que o sucesso é coisa dos outros. E não é só uma questão de dinheiro. É um modo de ser atravessado por códigos sociais que dizem o tempo todo que você está fora do padrão.

A psicologia social nos ajuda a entender esse fenômeno como um desdobramento do pertencimento negado. Quando se nasce em contextos de vulnerabilidade, com pouco acesso, com violência ao redor, com escolas precárias e olhares de desconfiança, a própria ideia de futuro é sabotada antes de se formar. O que sobra é sobrevivência. Planejar vira luxo. E quando se consegue alguma coisa, mesmo que pequena, o corpo inteiro sente como se fosse preciso pedir desculpas.

A neurociência já demonstrou que viver por anos em estresse crônico altera a forma como o cérebro processa risco, recompensa e decisão. A amígdala cerebral se torna hiperativa. O córtex pré-frontal, responsável pelo planejamento, sofre impacto. Isso não significa incapacidade. Significa que muita gente precisa gastar o dobro de energia só para se manter funcional. E ainda escuta que está “fazendo corpo mole”.

No campo da motivação, a Teoria da Autodeterminação nos mostra que o ser humano precisa de três elementos para florescer: autonomia, competência e vínculo. Para quem nasce em territórios marginalizados, esses três pilares são abalados desde cedo. O vínculo com figuras de referência muitas vezes é marcado por insegurança ou ausência. A competência é questionada, e a autonomia é reduzida a poucas escolhas possíveis. Não se trata de vitimismo. Trata-se de uma leitura realista sobre os efeitos psíquicos de crescer sendo considerado um corpo descartável.

E quando alguém rompe esse ciclo, o reconhecimento social costuma vir com um pacote silencioso de exigências. Esperam gratidão, lealdade cega, esforço redobrado. E, por dentro, vem o medo de não conseguir sustentar o lugar que se conquistou. Por isso tanta gente sente que não pertence, mesmo depois de subir alguns degraus. O racismo estrutural, o classismo e o machismo criam armadilhas subjetivas. É como se, em algum nível, ainda fosse preciso provar o tempo todo que merece estar ali.

O que essa frase pede, no fundo, é um reconhecimento coletivo de que não basta vencer. É preciso curar o caminho. E cuidar do que ainda lateja depois da conquista.


Algumas práticas ajudam nesse processo de reconexão identitária. Nenhuma delas é fórmula, todas exigem presença:

  1. Repare nas vozes que você repete. Muitas crenças de incapacidade não nasceram em você. Foram herdadas.

  2. Identifique quais espaços ampliam sua identidade, e quais apenas toleram sua presença.

  3. Crie pausas para sentir orgulho. Não o orgulho performático das redes, mas aquele que nasce no silêncio de quem sabe o quanto foi difícil continuar.

  4. Permita-se mudar de ideia sobre si. O autoconceito não é fixo. Pode ser ressignificado.

  5. Invista em grupos onde a escuta não te silencie. Estar entre pares transforma o senso de merecimento.

  6. Cuide das tensões internas entre quem você foi e quem está se tornando. A transformação não precisa apagar sua origem.

  7. Lembre-se que você não precisa ser exceção. Você pode ser só você. E isso já é revolução.


Dizer que achou que nunca seria alguém é colocar em palavras o quanto o mundo ainda precisa mudar para que todas as pessoas se sintam dignas de existir com voz, com espaço e com descanso. Porque ser alguém não é um destino a ser alcançado. É um direito que deveria estar garantido desde o começo. Mas se não estiver, que a gente siga construindo. Com consciência, com dignidade e com a coragem de reescrever o que nos foi negado.


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